quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Trechos e Trilhas...Retratos do percurso...: Prova de Amor incondicional á Literatura...

Trechos e Trilhas...Retratos do percurso...: Prova de Amor incondicional á Literatura...: "Gente... encontrei essa linda prova de amor á Literatura e achei incrível poder compartilhá-lha pois concordo em todos os sentidos com tudo ..."

Prova de Amor incondicional á Literatura...

Gente... encontrei essa linda prova de amor á Literatura e achei incrível poder compartilhá-lha pois concordo em todos os sentidos com tudo que aqui é questionado , comentado e pensado... Experimentem...



Não sou muito dada a inícios convencionais de ano. Recomeço tantas vezes num ano só e sempre em datas imprevistas que não vejo muito sentido em festejar um dia específico do calendário. E o fato de não encontrar sentido na comemoração da data não me torna nem melhor nem pior do que ninguém. Mas como de algum modo a maioria das pessoas para – ou é parada – nessa época para pensar na vida e promover um recomeço simbólico, quero dar uma sugestão. Além das metas de sempre – parar de fumar, perder uns quilos, se matricular na academia de ginástica etc etc –, minha proposta é que cada um de nós se arrisque a descobrir a literatura. Tenha a coragem de chutar para o ano que passou a surrada desculpa do “não tenho tempo para ler” e se carregar para o futuro com espaço para o novo que vem das letras. Por quê? Por nada de útil. Por tudo o que importa.No Paiol Literário, um evento que leva a Curitiba escritores para uma entrevista pública, há uma pergunta clássica e recorrente: “A literatura é capaz de transformar o mundo?” Ela vem entrelaçada a uma outra: “Qual é a importância da literatura na vida cotidiana de cada um?”. Quem criou essas duas perguntas no início do projeto, em 2006, foi José Castello – jornalista, crítico literário, escritor e uma das pessoas mais gentis que andam por esse mundo. Depois, Luís Henrique Pellanda, também jornalista e escritor, seguiu com elas ao substituí-lo no posto de entrevistador.
Perguntei a Pellanda se ele poderia emprestar algumas respostas colecionadas ao longo dos anos para publicar aqui nesta coluna. E ele, que também é um homem muito gentil, me enviou sete. Eu escolhi as três que mais me cutucaram com um dedo delicado, mas incisivo, para compartilhar com vocês nessa conversa de virada de ano. Acho que são respostas que dão coceira na alma. E coceiras da alma, na minha opinião, só se resolvem com arte. Com literatura.
Sérgio Sant’Anna, autor, entre outros, de Um Crime Delicado e O Voo da Madrugada, ambos publicados pela Companhia das Letras, respondeu que a literatura dá ao leitor uma possibilidade imperdível: “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário. E não é só o escritor que tem isso. O leitor também tem. Ele é um cara que vive dupla ou triplamente”.
E, em seguida: “A literatura é um ato de prazer, que não deve ter segundas intenções. Ela dá aos leitores um espaço muito maior. Se você está lendo um livro, se vê obrigado a criar junto com ele — algo que, na televisão, não existe. Na TV, você pega as coisas mais mastigadas, uma torrente de anúncios e de segundos interesses. É muito ruído.”
Silviano Santiago, autor, entre outros, de O Falso Mentiroso e Anônimos, ambos editados pela Rocco, diz que todo leitor é também escritor. Ele afirma: “É inegável que a literatura tem uma função, assim como todas as artes têm. O primeiro cuidado a ser tomado, se a gente fala da função da literatura, é não fazer uma divisão entre produtor e consumidor. Ou seja, não fazer distinção entre escritor e leitor. Acho que a literatura tem a mesma função para ambos. Não existe um escritor que não seja leitor. Todo leitor é, por sua vez, um produtor de texto. Nós, escritores, escrevemos em uma folha de papel ou na máquina ou no computador, enquanto o leitor escreve naquilo a que os jesuítas chamavam de ‘folha de papel em branco da mente’”.
Santiago diz também que, ao ler, o leitor se apropria daquele mundo e o torna seu. Não apenas seu por estar dentro dele, mas seu como ele mesmo. “O processo de leitura é um exercício de alteridade. É você entrar em um determinado mundo que não é o seu, no qual se entra muitas vezes por um processo de surpresa. Você não esperava aquilo de maneira alguma e, de repente, entra e se encanta com aquele mundo. Quanto mais se entra naquele mundo, mais se apropria dele, mais torna aquele mundo você mesmo. O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, de si próprio.”
A literatura nos dá muito. Mas não promete nada. É o que disse Luís Henrique Pellanda, autor de O Macaco Ornamental(Bertrand Brasil), ao trocar de lado e responder a uma pequena entrevista para esta coluna. “A literatura não promete felicidade alguma — pelo menos não do tipo clássico, ou seja, o tipo imaginário — e não nos oferece garantias de finais felizes, nada disso. Ela nos amplia a vista de casa, nos mostra o outro — igual e diferente de nós — e exige que nos comparemos a ele, que nos analisemos e, de alguma forma, promovamos reformas internas”.
Ao responder à sua própria pergunta sobre o poder de transformação da literatura numa crônica recente, Pellanda disse lindamente: “Literatura, para mim, pode ser simplesmente a maneira como reordenamos, há milênios, as mesmas histórias, fabulação sobre fabulação, mentira sobre mentira, verdade sobre verdade, e o uso pessoal — íntimo, social, político, intelectual, espiritual — que fazemos delas. Se a literatura é capaz de mudar o mundo? Eu diria que o mundo em que vivemos, bom ou ruim, já é o mundo da literatura. Só ela dá conta das nossas histórias de amor”.
Beatriz Bracher, autora, entre outros, de Antonio e Azul E Dura, ambos publicados pela Editora 34, respondeu à mesma pergunta em duas etapas. Na primeira, no Paiol Literário, ela disse: “A arte pode transformar o mundo ou não, como muitas outras coisas, como as ideias e a política. Mas não acho que ela tenha uma proeminência nesse aspecto. Ela pode transformar o mundo simplesmente por fazer parte dele. Ela está aí. Agora, essa crença de que a arte transformaria radicalmente o mundo, que criaria um novo homem, que nos traria uma espécie de iluminação — não acredito nisso”.
“Por que é importante ler?” – ela pergunta a si mesma. “Não sei. Acho que ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. Para você ser os outros e habitar outros lugares durante o tempo em que estiver lendo. E, quando você voltar ao aqui e ao agora, a você mesmo, voltará com os olhos muito mais aguçados. Eu saio de um livro sempre muito comovida, ou tocada, ou agressiva. Sempre me transformo de alguma maneira. Fala-se muito que temos uma grande afeição ao caos, que o mundo é informe e que a arte daria forma às coisas. Na verdade, temos pânico do caos. Nós não conseguiríamos viver sem alguma ordem na nossa história. E o que a literatura faz é desordenar um pouco isso, mostrar outras maneiras de organizar nossa vida”.
Beatriz foi para casa e continuou provocada pela pergunta. Enviou então um email a Pellanda. E um bem bonito: “Por que é importante ler? No nono e último círculo do Inferno, de A Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do ‘primeiro pranto, qual viseira de cristal’, congelam-se depois de inundar ‘do olho a cava inteira’. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros”.
Como se pode abrir mão de algo assim? Viver sem essa possibilidade? É Pellanda quem nos sacode: “Não ler, em muitos casos, é sintoma de preguiça e falta de condicionamento. Um mal prosaico. Muita gente não lê por levar uma espécie de vida mental sedentária. Aceitam que sua fome tão humana de fabulação seja alimentada pela TV ou pelosblockbusters e, com isso, apenas engordam sua passividade. Digo, de cara, que quem não lê perde a chance de se mostrar ativo em relação ao seu mundo e ao seu tempo. Perde vitalidade. Perde uma ótima oportunidade de se treinar para uma vida mais rica e, quem sabe, feliz”.
No Brasil, um país onde se lê tão pouco e onde metade dos adolescentes tem dificuldades para interpretar um texto, acredito que é preciso profanar a literatura. Aprendi isso com o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, o maior sarau de poesias do país. Os livros precisam deixar de ser sagrados e virar matérias das ruas, tocados por muitas mãos, marcados por lágrimas, suor e gordura. Antes de iniciar a leitura, é preciso apalpar, cheirar, bolinar o objeto que contém a história – ainda que isso seja feito virtualmente. É importante perder o medo dos livros, um excessivo respeito. Incinerar para todo o sempre a ideia de que a literatura é território restrito dos que supostamente sabem mais e torná-la matéria permanente das nossas vidas. Espécie de feijão e arroz da alma.
Não importa o que você lê nesse primeiro movimento, importa que você comece a ler. Leia por prazer. Leia por temor. Leia por coragem e por inocência, fingindo desconhecer que não será o mesmo depois do ponto final. Ninguém precisa começar lendo Proust – nem mesmo precisa ler Proust alguma vez na vida, embora eu ache que vale a pena. Leia aquilo que lhe dá prazer – ainda que seja um prazer vindo do incômodo – e crie uma história só sua com os livros, movida pela sua própria busca. Vá à livraria ou à biblioteca como se fosse a uma festa de gente desconhecida – e até esquisita – e veja com quem tem afinidade, quem lhe sorri, mostra a língua ou um naco da coxa.
O melhor da literatura é que ela não nos dá nenhuma resposta. Nos dá algo muito melhor: nos dá novas perguntas. Perguntei a Pellanda de onde veio a indagação que motivou este texto. Ele respondeu: “De onde vem uma pergunta? De nossa compulsão por saber das coisas, uma compulsão imortal, que nunca será saciada, pois jamais saberemos de nada. E não é ela, essa incerteza sedutora, que nos leva a escrever e a ler? Já se tornou um clichê dizer que a boa literatura não nos responde coisa alguma, e que somente nos faz mais perguntas, apenas perguntas, e irrespondíveis. É um lugar-comum, ok, mas está correto. A última frase de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é uma pergunta e a usei como epígrafe de meu primeiro livro de ficção. Depois de mais de oitocentas páginas, não se conclui nada, e o narrador de Mann se pergunta: ‘Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?’. Será? Não sabemos. Não há resposta possível, nunca houve. E a literatura é isso, fazer as perguntas difíceis, às vezes as constrangedoras. Como aquelas que as crianças nos fazem”.
Para mim não há vida sem literatura. E mais tarde, num outro dia, darei minha própria resposta à pergunta maior do Paiol Literário. Por enquanto, desejo a você que, em 2011, se arrisque mais. Leia. Se já tem intimidade com os livros, aprofunde-a. Tente um território novo. Fale sobre livros em vez de falar mal do chefe, do vizinho, do colega. Faça um favor a si mesmo: prometa que, no novo ano, jamais dirá que não tem tempo para ler.
Talvez a gente nunca saiba se a literatura é capaz de transformar o vasto mundo de fora. Mas podemos nos arriscar a descobrir – e esta é uma tarefa pessoal e intransferível – se a literatura é capaz de transformar o nosso mundo. O meu, o seu. Acredito profundamente que sim. Se tivermos a coragem de tentar, o mundo de dentro vai se alargar. E andaremos por aí carregando nosso próprio horizonte.
Termino com mais algumas ótimas frases de Luís Henrique Pellanda. E as pego emprestadas como meus votos de Ano-Novo:
– Quer dizer, você sabe ler e não lê? Onde é que você está com a cabeça? Achou seu espírito no lixo? Leia. Aproveite.


Texto iluminado de  ELIANE BRUM 
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê(Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua(Globo).(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)